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domingo, 4 de abril de 2010

RESIDÊNCIAS DE PERSONALIDADES DA LITERATURA E DA MÚSICA QUE VIVERAM EM SÃO PAULO REVELAM A RELAÇÃO DOS ARTISTAS COM A CIDADE um poeta passou por aqui

por João Carlos Lopes

Os bastidores de uma obra literária, de um poema ou de uma canção podem estar registrados em uma rua qualquer, perdidos no cotidiano da metrópole.

Para encontrar alguns desses endereços em São Paulo, a Revista percorreu a cidade em busca da história de autores cultuados ou esquecidos, vasculhando arquivos públicos, ouvindo familiares, amigos e pesquisadores.

As casas e as rotinas paulistanas de poetas, escritores e músicos são um testemunho das mudanças que a cidade sofreu.

A negligência com os acervos e as casas que abrigaram importantes nomes da literatura e das artes do país é marcante, reclama Ana Luiza Martins, diretora do centro de estudos de tombamentos de bens culturais do Condephaat (órgão estadual de defesa do patrimônio).

"É com muito atraso que as cidades têm buscado suas casas históricas", afirma a historiadora. "Elas são importantes não só como marco físico, mas pelos conteúdos culturais que mantêm."

A seguir, um passeio por seis residências nas quais as marcas de seus ocupantes ilustres ainda se fazem sentir. O roteiro passa ainda por três endereços (leia mais à pág. 13), onde ficaram apenas registros etéreos de famosos moradores. Vestígios de uma Pauliceia que não existe mais.

álvares de azevedo (1831-1852)
praça almeida júnior, liberdade

Jefferson Coppola/Folha Imagem
O escritor Kizzy Ysatis, que se inspirou na obra de Álvares de Azevedo

"São Paulo parecia um enorme cemitério", diz Kizzy Ysatis, 33, sobre a capital paulista do século 19. Autor de livros de vampirismo, o escritor revisita o clima sombrio da cidade das cartas e peças do poeta Álvares de Azevedo.

Foi em encontros góticos que Ysatis entrou em contato com a obra do autor de "Lira dos Vinte Anos". Ali, Azevedo é cultuado como um pioneiro: pelas suas caminhadas noturnas, vestido de preto, e por escrever poemas sobre amor e morte.

Cercada de mistérios, a vida do poeta tornou-se uma obsessão para Ysatis, que o transformou em personagem de uma saga ficcional. A casa onde o poeta viveu é o palco do romance.

Encontrar o antigo endereço foi um desafio. "Vasculhei livros raros, mapas antigos e fiz pesquisas de campo que me levaram até a atual praça Almeida Júnior", diz, sobre o local onde teria existido a Chácara dos Ingleses. Foi nesse imóvel que o poeta teria vivido em 1847.

Professora de literatura da USP, Cilaine Alves Cunha relata que o local era palco de rituais sinistros. "Nessa chácara ocorriam sessões nas quais Álvares de Azevedo e seus amigos cobriam as paredes com tapetes pretos e esqueletos, apagavam os candelabros e substituíam as taças de vinho por caveiras."

A casa que serviu de moradia ao poeta foi demolida no processo de urbanização do início do século 20. A única construção preservada é a capela dos Aflitos, erguida no cemitério que ficava em frente à residência. É uma rara conexão entre a província do poeta ultra-romântico e a metrópole de hoje.

paulo bomfim (1926)
rua rêgo freitas, 435, vila buarque
Arquivo Pessoal
A casa da família de Paulo Bomfim, que já não mais existe; abaixo, o poeta e seu retrato feito por Anita Malfatti

Um prédio residencial ocupa hoje o endereço que abrigou o mais importante salão liter

O local era frequentado pelos participantes da Semana de Arte Moderna de 1922. Foi ali que também nasceu o poeta e escritor Paulo Bomfim, o caçula da família.

"As reuniões eram tão impor-tantes que Vicente de Carvalho escreveu uma peça para ser apresentada ali por Mario de Andrade, Tácito de Almeida, Guilherme de Almeida e Paulo Setúbal", conta Bomfim. Aos 84 anos, ele se recorda das apresentações de músicos e compositores como Heitor Villa-Lobos, Madalena Tagliaferro e Camargo Guarnieri.

A historiadora Ana Luiza Martins, que prepara um livro sobre a história de São Paulo contada por meio da vida de Bomfim, diz que a casa foi um marco cultural. "Mas era diferente dos salões de Olívia Penteado e Veridiana Prado, onde havia uma ativida-de mais social", explica.

Paulo Bomfim guarda até hoje a antiga chave da morada e ainda se lembra do número de telefone instalado na década de 1950, época em que deixou o imóvel. Atualmente, o poeta caminha pelas ruas onde viveu na infância e não reconhece a paisagem.

A zona passou a ser chamada de "Boca do Lixo", desde que virou reduto de bares e boates a partir da década de 1960. E o imóvel virou um exemplo clássico da desfiguração histórica da cidade. A casa foi demolida e deu lugar a um edifício. "A rua foi recebendo construções sem a devida ordenação urbana", critica Ana Luiza.

guilherme de almeida (1890-1969)
rua macapá, 187, perdizes
Arquivo Pessoal
Guilherme de Almeida na sala preservada até hoje e que poderá ser visitada a partir de julho

A arma, as balas e o capacete utilizados por Guilherme de Almeida nos combates da revolução de 1932 ainda estão no mesmo cômodo onde o poeta e jornalista escrevia seus versos.

Mesmo esvaziada de vida cotidiana há mais de 40 anos, a casa em Perdizes, na zona oeste, mantém os móveis, a biblioteca, as obras de arte e todos os objetos. Virou museu biográfico do poeta em 1979. "Sentado na sala, ainda tenho a impressão de que Guilherme de Almeida vai descer as escadas", diz o poeta Paulo Bomfim, que era amigo do autor de "Meu" desde a juventude.

No pequeno quintal, uma lápide presta homenagem a Ling-Ling -o cachorro pequinês de Baby, mulher do poeta. E, em todos os cantos, surgem pequenos tesouros, assinados por Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Lasar Segall e Victor Brecheret.

"Hoje, a casa é um pequeno museu que reúne um acervo valioso, além de manter a identidade histórica e cultural de uma época", diz o coordenador Marcelo Tápia.

O espaço passou a abrigar um centro de estudos em tradução literária. "Por isso, a casa de Guilherme de Almeida é um corpo que não perdeu sua alma", afirma Paulo Bomfim. Fechado para visitação há quatro anos, o local deve ser reaberto em julho.

chico buarque (1944)
rua buri, 35, pacaembu
Jefferson Coppola/Folha Imagem
Casa onde viveu Chico Buarque

A biblioteca era o cômodo mais importante da casa de número 35 da rua Buri, em 1957. Ali, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda recebia os amigos: Manuel Bandeira, Florestan Fernandes, Fernando Sabino e Vinicius de Moraes.

Era lá que o jovem Chico Buarque descobria os romances franceses e os autores brasileiros que marcaram sua formação. "A biblioteca de papai e o ambiente de convivência com intelectuais influenciou o início da produção de Chico", explica o economista Sérgio Buarque de Hollanda Filho, sobre o trabalho do irmão.

No endereço, o cantor e com-positor produziu as canções do início da carreira. "Ele começou 'A Banda' de manhã e, na hora do almoço, já estava pronta", recorda-se Wagner Homem, amigo do cantor e autor do livro "Histórias das Canções - Chico Buarque".

Os companheiros da bossa nova também frequentavam a casa paulistana de Chico, especialmente João Gilberto, Tom Jobim e Baden Powell.

Hoje, o imóvel pertence à Prefeitura de São Paulo, embora seja objeto de disputa judicial entre uma ex- babá da família e os herdeiros. Na casa, desocupada desde novembro de 2009, a Secretaria de Educação planeja instalar um centro de referência em formação acadêmica.

"Nas maiores cidades culturais do mundo é comum que as residências de grandes escritores sejam preservadas", diz Sérgio. "São ambientes de valor simbólico, mas que representam um patrimônio da cultura."

mario de andrade (1893-1945)
rua lopes chaves, 546, barra funda
Jefferson Coppola/Folha Imagem
A residência de Maria de Andrade, onde hoje funciona um centro de literatura

Registrada em cartas, poemas e fotografias históricas, a casa da rua Lopes Chaves é sinônimo de Mario de Andrade. Cada canto da residência preserva uma parte da história do poeta modernista. No quarto, foi escrito "Ode ao Burguês", poema símbolo da Semana de Arte Moderna; no escritório, a "Pauliceia Desvairada".

Em 1921, o poeta passou a viver no local, acompanhado da mãe e da madrinha. Permaneceu no endereço até a morte, em fevereiro de 1945.

A casa, ainda preservada, não mantém qualquer acervo do autor. A mobília, manuscritos, obras de arte e objetos pessoais estão alojados no IEB (Instituto de Estudos Brasileiros da USP). A antiga residência hoje é ocupada pela Oficina da Palavra, um centro público de cultura que oferece cursos de literatura. "A casa não tem mais nada dele, mas ainda tem tudo", afirma Rosa Artigas, coordenadora do centro.

Segundo ela, a temática dos cursos segue a diversidade e a inovação da obra do poeta. "É possível encontrar os fios que levam à vida de Mario de Andrade no cotidiano da cidade", constata Rosa. "Ele foi um poeta que viveu São Paulo."

paulo leminski (1944-1989)
rua ceará, 247, higienópolis
Mônica Vendramini - 1988/Folha Imagem
Leminski e Fortuna, no apartamento, da cantora em São Paulo

Brevíssima e irreverente, tal qual os haicais que produzia, foi a passagem de Paulo Leminski pela capital paulista. Em 1988, o poeta curitibano se hospedou durante quase todo aquele ano no apartamento da cantora Fortuna Safdié, 52, em Higienópolis.

Apresentados pelo compositor Itamar Assumpção, logo estabeleceram uma forte ligação. "Nós tínhamos uma cumplicidade conceitual e uma amizade verdadeira, um pouco de irmãos", diz a cantora, que espalhava os haicais do amigo por todos os cantos."Ele escrevia em guardanapos, em quadros, no que tivesse perto."

Os poemas produzidos nesse período estão reunidos em "La Vie en Close", livro póstumo do poeta, publicado em 1991.

Fortuna acredita que o auge da carreira de Leminski foi vivido na capital, embora aquele tenha sido o período mais triste da vida do poeta, depois da perda de um filho e do irmão. "Ele tentou uma sobrevida aqui, porque já estava bastante ferido."

Na época, Alice Ruiz, viúva do poeta, vivia com as filhas em Curitiba. Até hoje, ela sabe pouco sobre a vida de Leminski em São Paulo. Lembra, no entanto, que foi aqui, em setembro de 1988, que o poeta teve o diagnóstico de cirrose hepática, doença que lhe tirou a vida um ano depois.

quase anônimos
Descubra os endereços que foram ocupados por grandes nomes em São Paulo, cujas referências se perderam

Arquivo Pessoal


DORIVAL CAYMMI (1914-2008)
rua dr. cesário motajr, 254, vila buarque

A artesã Ilse Arns, 68, mora com as duas filhas no apartamento que em 1955 serviu de residência para Dorival Caymmi. O compositor baiano viveu apenas oito meses na cidade, mas foi ali que fez letra e música de "Maracangalha", que marca o auge da sua carreira. Ilse mudou-se sem saber que os Caymmi moraram no endereço. "Mas sinto orgulho e fico imaginando como teria sido a vida deles aqui."

CASTRO ALVES (1847-1871)
rua direita, hotel d'itália, centro

Ao chegar a São Paulo em 1868, Castro Alves instalou-se no Hotel D'Itália, entre as ruas São Bento e Direita. Viveu na cidade por quase dois anos, dividindo quarto com Rui Barbosa. Com a construção da praça do Patriarca, em 1926, o hotel foi demolido. "Castro Alves viveu intensamente em São Paulo", diz o historiador Cássio Schubsky."Foi um popstar, fazia duelos e declamações de improviso em público."

OSWALD DE ANDRADE (1890-1954)
rua aurora, 579, centro

A atual moradora do apartamento onde Oswald de Andrade era visitado em 1954 por Jorge Amado, Rubem Braga e Antonio Candido nunca ouviu falar do poeta e dramaturgo, figura central do movimento modernista. Assim acontece também em outros endereços ocupados por ele em diferentes bairros. Não há centros de cultura dedicados ao autor do "Manifesto Antropófago".

Fonte: Revista da Folha

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