Então

sábado, 14 de agosto de 2010

Uma por todas



Por Míriam Leitão e Alvaro Gribel

O mundo tem vivido uma lenta espera do fim trágico de uma mulher. Ela é uma apenas, Sakineh Ashtiani, mas parece todas. Sua confissão forjada na TV é a macabra tentativa do governo do Irã de pôr a culpa na vítima, antes do ato final. Sakineh ajuda a entender o Irã, ilumina outros casos que estavam nas sombras, e lembra a questão sempre aberta da violência contra a mulher.

A globalização é sua única chance. Condenada inicialmente por adultério, que confessou após 99 chibatadas, ela teve a acusação trocada por envolvimento na morte do marido. Seria mais uma mulher apedrejada no Irã ou em algum país onde os extremistas de uma religião controlam o Estado, se não fosse a divulgação do seu caso pelo mundo através de todas as mídias. No Brasil, surgiu o #ligalula no Twitter; pela internet, pessoas anônimas e famosas assinaram o abaixo-assinado pedindo suspensão da pena e libertação. Por todos os meios, seus filhos lutam para salvar a mãe. Seu filho de 22 anos, Sajjad, escreveu à ONU dizendo que vive em pesadelos com a possibilidade de a mãe ser apedrejada e diz que está convicto da sua inocência.

Quando Sakineh, com seu calvário, levanta o véu, o que se vê são outros casos brutais. Mariam Ghorbanzadeh, 25 anos, acusada de adultério, abortou após torturas na mesma prisão e também foi condenada à morte. A afegã capa da “Time”, Bibi Aisha, mutilada sem o nariz e a orelha. Os casos vão sendo revelados e trazem a marca da mesma perversidade.

Seria injusto acusar só o Irã de violência contra as mulheres. Infelizmente, essa é uma ferida aberta na área dos direitos humanos. A advogada Leila Linhares, feminista e integrante da comissão da OEA que monitora o assunto, explica que há dois tipos de países:

— Há países que têm na sua Constituição leis igualitárias e garantias de respeito aos direitos das mulheres. Mesmo nestes países, há violência contra a mulher. Mas há países que têm leis discriminatórias e que desrespeitam os direitos humanos. O Irã faz parte desse segundo grupo — me disse ela no programa que fiz na Globonews.

Em 1993, numa conferência internacional, a ONU passou a considerar a violência contra a mulher um crime contra os direitos humanos, contou Leila, que estava lá. Um espanto que isso tenha sido considerado só em 1993. Mesmo assim, as notícias não são boas a partir daí. Os países que assinaram a convenção têm que enviar regularmente relatórios sobre seus problemas:

— Nem em países considerados desenvolvidos, como Suécia e Noruega, se deixa de ver crimes cometidos contra os direitos das mulheres. A pressão internacional pela segurança das mulheres é tímida, e vem basicamente de grupos feministas. Nas organizações internacionais esse é um problema considerado de segunda ordem.

O embaixador Roberto Abdenur acha que não se pode aceitar, em nome do multiculturalismo, atos que ofendem a dignidade da pessoa humana:

— Foi por isso que em 1948 se escreveu a Carta dos Direitos Humanos e depois se criou o conselho. No mundo da globalização se tem mais visão do que está acontecendo. O episódio como esse terrível da senhora Sakineh ocorre num país fechado, isolado, em retrocesso, mas o fato põe o Irã na berlinda.

Leila Linhares também rejeita o que ela define como “naturalidade com que se aceitam tratamentos desiguais e discriminatórios em nome do relativismo cultural.”

— Em 1993, em Viena, foi feito um tribunal de crimes contra mulheres e analisados inúmeros casos, inclusive de uma brasileira. Havia casos de mulheres de países católicos, protestantes, judeu e muçulmanos. Vítimas brancas, negras, ricas e pobres. Os crimes contra mulheres acontecem em todas as partes do mundo.

O Brasil ficou no meio da polêmica de Sakineh pela guerra de versões sobre se o país ofereceu mesmo ou não asilo a ela. Todo o assunto foi tratado da forma errada desde o começo, quando o presidente Lula disse que cada país tem suas leis, até o momento em que improvisou uma oferta de asilo no meio de um evento de campanha. O assunto é sério demais para ser tratado assim.

O que enchia de esperança os defensores de Sakineh era que os erros da operação diplomática do apoio brasileiro ao Irã pudessem dar algum capital político a Lula. A torcida continua existindo, mas a reação do governo de Teerã, de chamar Lula de mal informado, mostra mais uma vez quais eram os propósitos de Mahmoud Ahmadinejad: usar o Brasil.

O embaixador Abdenur era o representante brasileiro na AIEA em 2003, quando pela primeira vez surgiram provas de que o governo iraniano por 18 anos havia escondido informações sobre seu programa nuclear. Recentemente, a Agência elevou o tom da avaliação do programa iraniano. Por tudo isso, ele conclui que o Brasil cometeu um erro diplomático grosseiro quando aceitou fechar aquele acordo com Teerã, votar contra a decisão do Conselho de Segurança e agora se dizer “contrariado” de ter que aderir às sanções:

— O Brasil entrou numa fria com seu apoio, confraternização e solidariedade em relação ao governo iraniano.

Por seus óbvios objetivos bélicos, o programa nuclear iraniano não é defensável. Pela força do seu simbolismo, quem tem que ser defendida com paixão é Sakineh, a mulher iraniana que está entre as pedras e a forca. Podem dizer que ela é uma só. Quem é Sakineh diante de tanta perversidade que existe contra as mulheres? Ela é símbolo. Lutar para salvá-la é dar um passo a mais para proteger todas as mulheres do mundo

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